Igrejas, comunidades terapêuticas
Pessoas que se detêm diante do sofrimento de outros, param nas ruas, ouvem queixas, socorrem vizinhos, visitam hospitais e presídios. Fazem tudo anonimamente, seguindo o exemplo do samaritano da parábola de Jesus (Lc 10.25-37).
Grupos cristãos que se mobilizam para socorrer necessitados, distribuindo alimentos e remédios, revezando-se ao lado de doentes, acompanhando solitários. Eles se inspiram na advertência de Jesus: “[...] sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25.40).
Comunidades singelas que se reúnem nas periferias, acolhendo os aflitos, juntando-se em oração, mobilizando recursos, abrindo espaços de socialização e autenticação de identidades. O desafio é se manterem fiéis ao ensino do Mestre: “[...] quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva” (Mt 20.26).
Igrejas mais organizadas, inseridas na vida urbana, que se empenham em superar tendências individualistas e preconceituosas, formando grupos solidários e comprometidos, juntos nas alegrias e nas tristezas da vida. São expressões de reconhecimento daqueles que experimentam o amor de Deus: “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4.19).
Todos estes exemplos sinalizam a presença da Igreja do Senhor Jesus Cristo. Em meio ao mundo impregnado pelas inúmeras expressões do pecado individual e coletivo, apontam que é possível ser diferente. Deus quer que façamos diferença, pois “o próprio Filho do homem não veio pra ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45).
Ao longo dos tempos, os cristãos têm sido despertados para a responsabilidade de vivenciar o evangelho em sua integralidade. A mesma mensagem de fé e esperança revelada na Bíblia ganha, em diferentes contextos, linguagem que se articula com o momento histórico. Práticas que porventura se encontram esquecidas são então atualizadas e revelam novas expressões do amor cristão.
Vejamos aqui um exemplo desta aproximação, considerando um conceito que vem sendo difundido a partir da segunda metade do século 20. Desde então, tornou-se comum nos meios assistenciais falar em comunidade terapêutica, na busca de resgatar princípios e implementar práticas efetivas na promoção da saúde.
Partiu-se da observação de que diversas instituições da sociedade não cumprem o seu papel em benefício das pessoas. Cientistas sociais foram pioneiros nessa crítica, tendo-se como referência o trabalho de Erving Goffman, caracterizando o que chamou de “instituições totais” – aquelas que se propõem a abrigar pessoas em regime fechado, prometendo suprir todas as suas necessidades. A constatação é que, em tais ambientes, a despeito de toda boa vontade propalada, tende-se ao autoritarismo, sendo imposta uma hierarquia rígida, que leva à humilhação e à desumanização dos assistidos.1 Nesse contexto, as instituições que acolhem doentes mentais mostraram-se exemplos típicos de tal perversão de propósitos.
No Brasil, os grandes hospitais psiquiátricos surgiram ainda no século 19 (no Rio de Janeiro) e no começo do século 20 (em Franco da Rocha, Barbacena, Niterói, Recife, Fortaleza, entre outras cidades). Em geral, eles detinham grandes extensões de terras e foram criados com a proposta de recuperação por meio das atividades rurais. Aos poucos, porém, tornaram-se grandes depósitos humanos, servindo para propósitos de exclusão social. Mesmo clínicas menores, de origem mais recente, incorreram nas mazelas anteriores, pois obedeceram à mesma lógica autoritária. Devemos reconhecer que tais instituições ainda são encontradas entre nós.
Surgiram então propostas de mudança, com a disposição de transformar tais instituições em comunidades que assumissem características realmente terapêuticas. O psiquiatra britânico Maxwell Jones destacou-se nessa direção, impulsionando um movimento que ganhou repercussão mundial.2 Para ele, algumas características precisam ser cultivadas nas instituições de saúde para que seus propósitos maiores sejam alcançados, tais como desenvolver um clima de convivência espontânea, em que predominem o respeito, a aceitação e a compreensão mútuos; cultivar um pacto de compromisso entre todos os envolvidos, em que direitos e deveres sejam respeitados; praticar uma liderança horizontal, sem rigidez hierárquica, exercida de forma democrática, em rodízio, que possa emergir segundo a competência, a ocasião e a necessidade; exercer o papel terapêutico como atribuição de todos os membros, mesmo daqueles com funções aparentemente simples, e dos próprios assistidos, em interação mútua.
Não tardou que se vislumbrasse certo paralelismo entre as propostas do movimento que crescia no campo da saúde mental e aquelas provenientes do evangelho. Além de todos os estímulos encontrados ao longo da narrativa bíblica, sobretudo nos ensinos e na própria vida do Senhor Jesus, o livro de Atos dos Apóstolos traz descrições encorajadoras sobre o dinamismo inerente às comunidades cristãs.
Em evento promovido pela Fraternidade Teológica Latino-Americana, realizado em Itaici, SP, em 1977, surgiu a proposta de articular o conceito de comunidade terapêutica com a dinâmica das nossas igrejas. Coube ao doutor Daniel Schipani, teólogo e psicólogo argentino, apresentar o documento definitivo: Iglesia, comunidad sanadora! [Igreja, comunidade curadora!]. Os pontos chaves de sua tese são:
• A reconciliação que experimentamos por meio da obra salvadora de Jesus Cristo é também uma ação curadora de Deus em cada um de nós;
• Tal reconciliação tem alcance amplo, assumindo a forma de terapia da pessoa integral;
• Jesus Cristo pode ser tomado como o terapeuta por excelência;
• Cada comunidade cristã, sendo portadora da mensagem transformadora do evangelho, deve assumir seu amplo papel como agente desta terapia radical.
Na mesma direção surgiu o interessante livro “Curar Também é Tarefa da Igreja”, do pastor e médico psiquiatra, também argentino, Ricardo A. Zandrino.3 Ele destaca que a ação terapêutica das comunidades cristãs se expressa pela aceitação das pessoas, pela prática da confissão mútua, pelas manifestações de perdão, pelo exercício da oração intercessória, pela convivência grupal e pelo serviço cristão às pessoas e à sociedade, entre outras maneiras.
Está claro que tais recursos oferecidos pelas comunidades cristãs não excluem a busca pela ajuda de profissionais específicos e de instituições de saúde disponibilizados pela sociedade em geral.
Com esta inspiração, o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, fundado em 1976, assumiu a difusão da proposta de articular a prática das igrejas com o conceito de comunidade terapêutica. Tomamos como compromisso envolver-nos em participação e apoio às instituições cristãs, com a disposição de juntos encarnarmos a ampla proposta redentora de Jesus Cristo. Cremos que assim estamos sinalizando, ainda que de forma limitada, a promessa de vida plena que nos aponta para novos céus e nova terra.
Chamamos a atenção para o papel que os cristãos podem e devem exercer em face dos desafios de transformar a realidade da assistência em saúde mental. Vemos que isso se faz urgente, diante da disseminação do uso de substâncias psicoativas, especialmente entre os jovens da nossa sociedade. Sugerimos então alguns exemplos de contribuições que podemos oferecer:
• Rever preconceitos que excluem os doentes e seus familiares, abrindo espaço para acolhê-los e ajudá-los na convivência pessoal e grupal;
• Oferecer serviços de “acompanhamento terapêutico”, isto é, passar um período com os doentes em atividades de lazer, cultura, devoção etc.;
• Incentivar a criação e ampliação dos serviços, especialmente os extra-hospitalares. O espaço ocioso das igrejas e instituições religiosas pode ser muito bem usado para tal. A participação de conselheiros cristãos beneficiará os usuários dos serviços, bem como os próprios profissionais da saúde;
• Estimular famílias para que “adotem” pessoas para que, após anos de reclusão, possam ser reintegradas à vida em comunidade;
• Criar lares ou pensões “protegidas”, que ofereçam acolhimento temporário durante viagem ou alguma crise familiar, com a retaguarda de profissionais; • Participar dos conselhos de saúde, pois são eles que definem os planos de ação e o uso dos recursos no setor, recebendo fortes pressões de interesses e grupos. É necessária uma ação ordenada e coesa na direção do que realmente interessa à população.
Logo, vê-se que o esforço isolado de alguns não é suficiente. A força da coletividade, da organização grupal e da ação programada pode e deve ser mobilizada, garantindo resultados maiores. As igrejas cristãs dispõem, por certo, de recursos humanos e materiais para que tal propósito seja alcançado e, sobretudo, contam com inspiração e direção, quando firmadas na condução do Espírito de Deus.
Cabe, por fim, reafirmar que não se trata de implementar simples atos de caridade. Na verdade, a ponte da solidariedade é de mão dupla e os mais beneficiados costumam ser aqueles tidos como sãos e mais favorecidos. É sempre oportuna a frase atribuída a Abraham Lincoln, quando diante de alguém acometido por infortúnio aparentemente maior: “Ali, apenas pela graça de Deus, não estou eu”.
As comunidades cristãs só têm a ganhar quando se abrem em acolhimento ao doente, ao necessitado e ao diferente. Os desafios trazidos nos levam ao exercício dos diversos dons, à busca por recursos ainda latentes, à promoção de mudanças que beneficiam a todos. Afinal, as situações de aparente desgraça são, na verdade, oportunidades para a intervenção da graça de Deus. Ele pode nos usar para tal, fazendo-nos participantes das manifestações de sua misericórdia.
Referências bibliográficas
1. GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva, 1974.
2. JONES, Maxwell. The therapeutic community; a new treatment method in psychiatry. Nova York: Basic Books, 1953.
3. ZANDRINO, Ricardo A. Curar também é tarefa da igreja. São Paulo: Nascente, 1986.
• Uriel Heckert, médico psiquiatra, é mestre em filosofia e doutor em psiquiatria. É membro do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos e da 4ª Igreja Presbiteriana de Juiz de Fora.
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