Fonte: Cristianismo Hoje
A arte
perdida da memorização das Escrituras Sagradas é um poderoso elixir
espiritual.Por John Wilson
Quando foi a
última vez em que você memorizou versículos das Escrituras? Provavelmente, na
Escola Bíblica Dominical infantil ou em alguma gincana na igreja, não é mesmo?
Mas, se você se angustia por não conseguir recitar de cor nada além do Salmo 23
ou do texto de João 3.16, não se preocupe. Na memória, os evangélicos têm
registrado muito do que aprenderam inconscientemente: trechos da Palavra de
Deus. O valor da prática da memorização não tem tido o devido reconhecimento.
Certamente, grande parte daqueles que sentaram nos bancos das igrejas durante
anos sabem passagens bíblicas, e muitos preletores são capazes de citar trechos
de livros bíblicos como os de Levítico ou Lucas com a mesma autoridade. Mas,
caso você tenha sido criança nas décadas de 1950 ou 60, e esteve regularmente
em reuniões de oração – daquelas realizadas em meio de semana, onde as vozes
dos leigos predominavam –, certamente ouviu a Palavra de Deus sendo citada
dentro e fora de contexto, e a tem registrada na memória.
O que era
corriqueiro para as gerações passadas de crentes não desapareceu completamente,
mas também não é comum nos dias de hoje. Em parte, esse distanciamento das
Escrituras Sagradas do cotidiano dos cristãos reflete atitudes culturais de
maneira mais ampla. Vivemos em uma época na qual a memorização é rotineiramente
menosprezada, atitude resumida em frases como “memória de rotina” ou
“aprendizado de rotina”. Dizem-nos que a memorização desencoraja a
criatividade, o pensamento crítico e a compreensão conceitual. Mas este
menosprezo é estranho, uma vez que não encontra eco em nossas experiências do
dia-a-dia. Afinal, qualquer formação profissional requer muita memorização. O
que seria de um médico que não consegue decorar nomes de ossos e músculos ou de
um advogado que não sabe sequer trechos fundamentais dos códigos legais?
Não
acreditamos ingenuamente que a criatividade de músicos, atores ou estudiosos
será destruída por traços formidáveis de memória em sua demanda artística e
científica. Caso contrário, seria necessário questionar a genialidade de gente
como Charles Chaplin, Ludwig Beethoven ou Albert Einstein, que certamente
ocupavam boa parte de seus cérebros com intrincados discursos, fórmulas
matemáticas e pautas musicais. O que cada um deles fez ao longo da vida é um
exemplo especial do que todos fazemos desde que nascemos – uma jornada
ininterrupta de lembrar e esquecer, amplamente conduzida sem nossa escolha
consciente.
“Sempre que
você lê um livro ou tem uma conversa” – nos recorda o escritor científico
George Johnson, e quando atravessamos uma estrada, trocamos uma fralda ou
fazemos amor –, “a experiência causa mudanças físicas em seu cérebro. Em uma
questão de segundos, novos circuitos são formados, memórias que podem
transformar para sempre a maneira com a qual você vê o mundo”. O impacto da
maior parte do que memorizamos não é tão dramático ao ponto de mudar para
sempre a maneira com a qual pensamos sobre o mundo. Mas é real, e suas
consequências são acumuladas ao longo do tempo. Por essa razão, as escolhas que
fazemos sobre o que colocamos dentro da mente são de grande importância.
“Memorização das Escrituras”, escreve o autor cristão Dallas Willard, “é uma
das maneiras de dominar o conteúdo dos nossos pensamentos conscientes e dos
sentimentos, crenças e ações que dependem deles”.
RESISTÊNCIA ESPIRITUAL
Escrituras de
cor: Práticas devocionais para memorizar a Palavra de Deus, livro do pastor e
palestrante Joshua Choonmin Kang, inédito no Brasil, trata deste assunto de
maneira aguda e instigante. Autor de mais de 30 obras em coreano, sua
língua-mãe, e de um livro em inglês, Kang menciona diversas citações, como esta
“Não podemos fazer tudo de uma vez, mas podemos fazer uma coisa de uma vez só’
(de Sabedoria para a alma, de Larry Chang). O empenho de Kang em favor da
“ultrapassada” causa de memorização de Escrituras chama a atenção e torna seu
livro absorvente. Não se deve levar em consideração as distrações de estilo:
trata-se de um livro sábio, prático, cativante e, acima de tudo, capaz de
comunicar um vibrante amor por Deus e sua Palavra.
A insistência
de Kang na disciplina diária – não mais do que 30 minutos por dia, e não menos
do que quinze – é o ponto fundamental. Ele fala sobre uma intimidade constante,
um ensaio amoroso e uma exploração renovada dos versos que aprendemos, por
assim dizer, “de cor”. E todos aqueles versículos que aprendemos há tanto
tempo? Com poucas exceções, não são suficientemente frescos na nossa mente para
serem recitados. Mas será que isso realmente importa? Se você absorveu o
sentido e significado da passagem bíblica, é preciso sabê-la repetir palavra
por palavra? E o que dizer da dificuldade trazida pela variedade de versões e
traduções bíblicas hoje disponíveis?
Muitas
pessoas que cresceram na igreja podem dizer que essa questão de memorização os
remete a traumáticas experiências de catequese na juventude, na qual o espírito
da Palavra era posto de lado em nome da literalidade. Outros argumentarão que
têm sido plenamente satisfeitos com a modernidade das tecnologias digitais, que
dispensam a capacidade de lembrar de textos, já que um simples clique no mouse
ou no iPod pode exibir todos os versículos existentes sobre determinado tema.
Para as novas gerações, de fato, essa história de memorização parece pura perda
de tempo, esse bem tão precioso nos dias de hoje.
Isso poderia
ser distorcido desta maneira, assim como a oração pode ser distorcida
facilmente. Mas, a moda entre os evangélicos é depreciar a memorização das
Escrituras, ou ignorá-la. Kang observa que Jesus era “um incentivador de
hábitos. Ele lia as Escrituras na sinagoga (Lucas 4.16); orava durante a manhã
(Marcos 1.35); fazia preces em lugares altos (Lucas 22.39); e, como um
professor diligente, conseguia expor a Palavra de Deus, pois a sabia de cor.
“Quando nos comprometemos a memorizar as Escrituras”, escreve Kang, “seguimos
os passos de Jesus. Cultivamos seu estilo de vida, juntamos nossos esforços e
nos concentramos”. Para ele, memorizar a Bíblia não é um fim em si mesmo:
“Quando meditamos profundamente nas palavras das Escrituras, começamos a
frutificar. Quanto mais associamos a Palavra com a memória, mais somos
enriquecidos. O melodioso concerto da Bíblia Sagrada continuará a fazer eco em
nós. Então, nos encontramos com o condutor deste concerto, nosso Senhor Jesus,
o Espírito Santo, que nos ajuda a lembrar as Escrituras, e nosso Pai, que
receberá a glória através de tudo isso.”
COMPARTIMENTO DA MEMÓRIA
Quantas vezes
cada um de nós vai à estante procurar determinado livro e, em meio a tanta
oferta de informação, acabamos por nos deter em outros livros que nem estávamos
procurando, mas que acabam vindo bem a calhar para outro projeto ou ideia.
Assim acontece com os chamados compartimentos da memória. Enquanto pensamos
sobre a memorização das Escrituras e buscamos textos específicos no fundo de
nossa mente, “encontramos” mesmo muitos outros que nem sabíamos que estavam lá.
Isso porque muitas são as vozes que ouvimos no passado – nem todas
identificáveis – citando as Escrituras. Algumas ressoam fortes até hoje;
outras, já são tão frágeis que nem fazem muito sentido.
Memorizar as
Escrituras não é uma prática mágica que nos permite escapar dos sofrimentos da
vida, assim como uma Bíblia na estante, aberta no Salmo 91, não tem qualquer
poder para nos trazer boa sorte. Mas podemos confiar na promessa que Willard,
que nos lembra que, através da memorização, a Palavra de Deus permeia nosso
corpo, nosso ambiente social e oferece preciosa orientação acerca de nossa
vontade. Estas palavras se tornam um poder, uma substância que nos sustenta,
dirige nossos passos – sem mesmo pensarmos nelas – e emerge ao pensamento,
consciência e ação conforme o necessário. É o que Jesus fala quando diz que
fará morada em nós. E, se nos lembramos ou não de trechos da Palavra que
aprendemos em tempos idos, o que importa é que o Senhor se lembra dela, faz
morada nela e juntos estão como resposta a um convite gracioso. Memorizar as
Escrituras pode ser reduzido a uma técnica, uma competição, uma mera repetição
sem compreensão e outras coisas. Mas também pode nos levar a participar do
“melodioso concerto” que Kang evoca, tão bem expresso no Salmo 119.103: “Como
são doces para o meu paladar as tuas palavras! Mais do que o mel para a minha
boca!”

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