Fonte: Cristianismo Hoje
Avanço das
drogas na sociedade bate à porta da igreja e jovens evangélicos já fazem parte
de estatísticas do vício.
Por Marcos
Stefano
Tudo começou
com um punhado de anfetaminas e o desejo desenfreado de vencer no ciclismo. Mas
logo vieram o ecstasy, a cocaína, o crack, as brigas com a família e os roubos
para manter o vício que acabara de se instalar. A cada capítulo, o drama vivido
por Danilo Gouveia, personagem interpretado pelo ator Cauã Reymond na novela
Passione, da Rede Globo, mexe com os telespectadores e choca a sociedade com a
dura realidade das drogas. Não é o primeiro sucesso do showbiz macional em cima
do assunto. Há pouco tempo, o longa Meu nome não é Johnny, baseado no livro do
jornalista Guilherme Fiuza, ganhou as telas dos cinemas ao revelar as
desventuras de João Guilherme Estrella, um jovem que tinha tudo na vida, menos
limites, pelo mundo das drogas. Em comum, histórias como as de Gouveia e
Estrella alertam dramaticamente que ninguém está livre desse perigo – nem mesmo
aqueles que estão aparentemente nas situações mais seguras, aos olhos dos
homens. Johnnatan Wagner Richele Guardian, hoje com 25 anos, sabe muito bem o que
isso significa. Nascido numa família de pastores, Johnnatan cresceu dentro de
uma congregação da Igreja do Evangelho Quadrangular, numa pacata cidade do
interior das Minas Gerais. Na adolescência, envolveu-se com o grupo de mocidade
e começou a tocar nos cultos. Tinha talento e um futuro promissor. Mas trocou
tudo pela bebida e pela droga. A ponto de terminar traficando cocaína e crack
nas ruas da cidade de São Paulo. Tornara-se um dependente.
Para quem
observa hoje o trabalho e o envolvimento do obreiro Johnnatan com a juventude
da Igreja Internacional da Graça de Deus, onde se prepara para o pastorado, é
até difícil imaginar o que pode ter acontecido para um moço aparentemente tão
fervoroso espiritualmente ter se esfriado tanto. “As pessoas sempre me viam nos
cultos, mas não sabiam o que se passava comigo”, conta. Repetindo o que
acontece com tantoa garotos que crescem numa aparente segurança espiritual
dentro das igrejas, ele estava longe da fé fervorosa da avó, que sempre o
levava aos cultos. “Eu achava tudo muito careta e, influenciado por alguns
amigos, pensava que ser crente era viver escondido atrás de uma Bíblia”. Aos 19
anos, o rapaz deixou a igreja. Com a “ajuda” daqueles mesmos amigos, começou a
beber. Dali para as drogas, foi um passo.
A família, no
entanto, não desconfiava de nada. Só veio a descobrir a verdade quando Jonathan
foi morar com a mãe, na capital paulista. Como o que ganhava já não era
suficiente para comprar tóxicos, começou a vender coisas de casa até ser
flagrado pela mãe. Já estava dominado pelo vício. Nos anos seguintes, não foram
poucas as tentativas de deixar as drogas, mas elas sempre terminavam em
fracasso. Bastava uma discussão que o deixasse mais nervoso para Johnnatan
mergulhar novamente naquele mundo. “Quando ficava desempregado ou o dinheiro
acabava, vinham as vozes no ouvido: ‘Por que você não se mata? Jogue-se da
ponte!’. Era terrível”, recorda. Conseguiu sobreviver até que um de seus
patrões o levou de volta à igreja, onde recebeu a Cristo como Salvador. Logo
foi incentivado a largar o vício. Essa decisão, assim como a de romper com
velhas amizades e até mesmo um namoro, foram decisivas para que ele tivesse
êxito.
Histórias de
crentes que enfrentam o pesadelo das drogas chegam a soar muitas vezes quase
como surreais. Porém, o que mais impressiona não são experiências sobrenaturais
ou as misérias enfrentadas quando a pessoa chega ao fundo do poço, mas perceber
que esses casos se multiplicam. Por si só os números que envolvem as drogas têm
dimensões infinitamente maiores do que qualquer das pragas descritas no
Apocalipse. Estima-se que, em todo mundo, mais de 210 milhões de pessoas usem
algum tipo de droga ilegal. Dessas, de acordo com levantamento da Organização
das Nações Unidas, 26 milhões enfrentam problemas sérios, como a dependência de
substâncias mais pesadas, especialmente nos grandes centros urbanos. É um
problema de saúde pública, inclusive no Brasil, onde estima-se que haja quase
900 mil usuários. Mas, quando se pensa que uma parte desse contingente é
formado por jovens filhos de crentes ou desviados das igrejas, a preocupação é
ainda maior.
O pastor
Cilas, dirigente de uma igreja pentecostal do Rio de Janeiro, pede que a
reportagem omita seu sobrenome e o nome de seu filho mais novo, de 22 anos. Mas
não esconde que vive esse drama: “Eu prego a libertação que há em Jesus no
púlpito, mas esse processo ainda não aconteceu na minha casa”, lamenta o
religioso. No fim da adolescência, o filho, que desde bebê acostumou-se a ouvir
cânticos e mensagens de fé na congregação frequentada pela família, deixou de
ir aos cultos. Alegava que queria ficar em casa e assistir televisão aos
domingos, mas quando se via sozinho, saía furtivamente. “Pensamos que era
aquela coisa de adolescente rebelde, que um belo dia vai ter uma experiência
com Cristo e mudar de vida”, diz Cilas. O problema era muito maior – o garoto
já andava com outros rapazes mais velhos, que o iniciaram nas drogas. Passo
seguinte, abandonou os estudos e agora pouco aparece em casa, para desespero
dos pais. “Às vezes, fico semanas sem vê-lo, sem nem mesmo saber se está vivo
ou morto”, entristece-se o pastor, que admite a própria culpa. “Tinha tanto
interesse em buscar as almas perdidas que não percebi que tinha um perdido sob
meu teto.”
RELAÇÃO
PERIGOSA
Não existem
pesquisas nem números que quantifiquem de fato essa relação perigosa dos jovens
evangélicos com as drogas. Mas basta analisar o perfil dos pacientes internados
nas muitas casas de recuperação para dependentes químicos espalhadas pelo
Brasil para perceber que vários deles têm ou tiveram alguma relação anterior
com o Evangelho. Essa constatação se repete nas ruas. No Rio de Janeiro,
missionários que trabalham nas favelas costumam relatar encontros em que
traficantes pedem orações. “Cansei de conhecer traficantes filhos de crentes”,
confirma o missionário Pedro Rocha Júnior, de Jovens com uma Missão, a Jocum.
Atualmente no Cairo (Egito), ele passou mais de uma década pregando o Evangelho
e prestando serviços sociais no Morro do Borel, zona norte da capital carioca,
num tempo em que a comunidade era dominada pelo narcotráfico. “Muitos dos
traficantes tinham nomes bíblicos, como Ezequiel, Davi, Josué. Gente criada na
igreja, mas que depois pulou fora e caiu no vício.”
Em São Paulo,
na chamada Cracolândia – área da região central da cidade que ganhou fama pelo
tráfico de drogas e pela prostituição, além dos delitos praticados a céu aberto
e em plena luz do dia –, meninos e meninas que um dia cantaram em corais
juvenis de igrejas agora não passam de moribundos que vagam pelos becos
alucinados pela próxima dose. “É assustador ver que tanta gente com quem
trabalhamos saiu de igrejas e provêm de famílias evangélicas. Seja por terem
uma religião apenas nominal ou por experimentarem alguma frustração com o
sistema, foram presas fáceis para a tentação das drogas”, explica a advogada e
missionária Selma Maria de Oliveira, de 33 anos. Ela integra a Missão Cena,
organização interdenominacional que trabalha na região da Cracolândia. Sua
sede, localizada próximo dali, é um refúgio para quem já não pode contar com
mais nada nem ninguém. A cada terça-feira, centenas de moradores de rua e
viciados dirigem-se à base para comer, tomar banho, cortar o cabelo e trocar de
roupa. Lá, encontram abrigo temporário, mas que pode se transformar em
permanente: após passar por uma triagem, os usuários de drogas têm a
possibilidade de conseguir tratamento na Fazenda Nova Aurora, centro de
recuperação que a missão mantém em Juquitiba, no interior paulista.
A impressão
dessa alta presença de ex-crentes entre os viciados foi partilhada pelo
repórter de CRISTIANISMO HOJE. A revista acompanhou na região central de São
Paulo o trabalho de uma equipe de obreiros da Cena. Conversando com usuários de
drogas como o crack, é possível perceber a origem e formação evangélica de
diversos deles, como um rapaz que falava da Bíblia para moradores de rua.
Antes, líder do louvor numa igreja pentecostal, ele agora se tornou traficante.
Mesmo pedindo para não ser identificado, falou um pouco sobre sua história.
Ainda guarda do Evangelho a certeza de que há perdão e restauração em Cristo,
mas, por enquanto, diz não ter forças para sai do fundo do poço. “Tenho
esperança de que um dia voltarei para os caminhos do Senhor”, diz. Mesmo assim,
garante, fala do amor de Jesus aos outros. “Até ensino o pessoal a cantar
alguns hinos”, diz, sorrindo.
“Há pelo
menos quatro fatores que podem explicar o vício entre os jovens: o físico, o
psicológico ou emocional, o social – e também o espiritual”, explica a
psicóloga Gisele Aleluia, professora do Instituto de Integração da Família
(Inif) e de pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de
Janeiro. Coautora do livro Drogas.sem (Editora BestSeller), em que orienta como
ajudar alguém que pretende deixar o vício, ela diz que os adolescentes são
presas fáceis quando buscam reconhecimento entre os amigos e acham que as
drogas os ajudarão a ser mais populares ou vencer a timidez na hora de namorar.
Já outros, na ponta oposta, são por demais curiosos e autossuficientes para
achar que correm riscos. “A mesma falta de perspectivas pode ser encontrada
entre aqueles inseguros, que vão atrás de alívio para seus problemas”, aponta.
Pesquisa
recente mostrou que um em cada quatro estudantes do ensino fundamental e médio
da rede pública brasileira já experimentou algum tipo de droga, além do cigarro
e das bebidas alcoólicas. Num desafio ao bom senso, experimentam esse tipo de
substância cada vez mais cedo. Há dez anos, a média de idade para o primeiro
contato era de 14 anos. Agora, não passa de onze. As pesquisas também revelam
que, devido à exibição na televisão dos efeitos devastadores dos entorpecentes
na vida de viciados e às campanhas de prevenção, a juventude brasileira sabe o
tamanho desse problema. Ainda assim, boa parte dela não consegue ficar longe de
um baseado de maconha ou um papelote de cocaína.
“No meio
evangélico, some-se a tudo isso o ambiente repressor de muitas igrejas. Ao sair
desse sistema, o jovem está vulnerável e despreparado”, continua a psicóloga
Gisele. “Justamente por conta dessa tolerância para com os de fora e
intolerância para os de dentro, a igreja tem facilidade para lidar com quem
pede ajuda e dificuldade para auxiliar alguém já recuperado que recai”, diz.
Membro do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), ela lembra o caso
de um de seus pacientes. Filho de pastor, hoje, ele luta contra o vício. “A
pessoa quer mostrar sua rebeldia usando tóxicos. No caso desse rapaz, ele me
confessou que seu pai o havia prendido a vida inteira. Finalmente, quando conseguiu
sair, saiu demais.”
ESPIRITUALIDADE
TERAPÊUTICA
Do ponto de
vista da ciência, as drogas são uma doença. Um problema sério, capaz de acabar
com relacionamentos e inviabilizar o estudo e o trabalho – e que precisa do
devido acompanhamento e de soluções à altura. Mesmo assim, até na área médica
já existe um consenso de que a espiritualidade tem um papel muito importante
para prevenir e tratar a dependência química. No mais amplo estudo realizado no
Brasil sobre o tema, de autoria de pesquisadores da Universidade de Campinas
(Unicamp), mais de 16 mil estudantes foram envolvidos. A conclusão foi de que a
religiosidade é fator importante de prevenção ao vício.
Essa também é
a opinião dos órgãos governamentais responsáveis pela política nacional de
combate às drogas. “As instituições religiosas são fundamentais para minimizar
o impacto do uso das drogas na população. Ter fé auxilia no enfrentamento do
estresse e de situações difíceis na vida, que são fatores de risco para o uso
dessas substâncias”, defende Paulina Duarte, secretária adjunta da Secretaria
Nacional Antidrogas (Senad). Dentro da estratégia de priorizar a prevenção, um
dos principais projetos da instituição é o curso Fé na Prevenção, desenvolvido
para capacitar os religiosos a trabalhar na área. O objetivo era chegar ao fim
de 2010 com 200 mil pessoas treinadas.
“Valores
espirituais protegem a pessoa das drogas. Por isso, torna-se tão importante
falar a língua do jovem”, faz coro Gisela. Acontece que normalmente famílias e
igrejas que enfrentam o perigo das drogas com seus jovens têm dificuldade para
fazer a pressão na medida certa e ao mesmo tempo manter o mínimo de diálogo. Na
lacuna, quem entra com força são os centros especializados no acolhimento e
tratamento a viciados. Não por acaso, a maior parte das casas de recuperação
são evangélicas ou católicas, sendo procuradas também por quem não tem
religião. Mas a demanda é grande demais, inclusive por parte das igrejas e
famílias evangélicas que as veem como última esperança. Só a Federação de Comunidades
Terapêuticas Evangélicas do Brasil (Feteb) representa cerca de 300 instituições
do gênero no Brasil. Quem atua no setor quer fazer mais. “Para prestar um
serviço relevante à sociedade precisamos nos qualificar, mas também melhorar
nossa estrutura física”, diz o presidente da entidade, pastor Wellington
Vieira. “Um primeiro passo é o reconhecimento dos governos federal, estaduais e
municipais ao nosso serviço e parcerias que nos permitam adaptar-nos às
exigências da Vigilância Sanitária para o funcionamento das clínicas”,
reivindica.
A fé,
contudo, não faz milagres sozinha. “Não adianta somente se dizer evangélico. Se
a família que frequenta a igreja é disfuncional, a chance de seus filhos
pararem nas drogas é alta”, constata o pastor Carlos Roberto Pereira da Silva,
do Desafio Jovem de Rio Claro (SP). Desde 1998, a casa é a representante
oficial do Ministério Desafio Jovem Internacional, criado quarenta anos antes
nos Estados Unidos pelo pastor David Wilkerson, cuja história está registrada
no best-seller A cruz e o punhal (Editora Betânia). Na época, Wilkerson, pastor
de uma Assembleia de Deus no interior do país, mudou-se para Nova Iorque a fim
de evangelizar gangues que disputavam o poder nas ruas da metrópole.
“O tratamento
é melhor estruturado e mais complexo agora”, destaca Carlos, “mas, ainda hoje,
a filosofia de trabalho permanece a mesma. Temos uma das melhores porcentagens
de recuperados no país, com mais de 70% de sucesso. Nos Estados Unidos, o
índice chega a 86%”. Ele é parte dessa estatística, já que, no passado, foi
viciado e chegou a roubar e traficar drogas. Com conhecimento de sobra, o
pastor não tem ilusões em relação ao assunto. “Infelizmente, muitas igrejas
querem lidar com viciados sem o mínimo de estrutura. Não se tira alguém das drogas
com uma simples oração ou unção com óleo”. Mas sabe que o Evangelho de Jesus
continua tendo poder de mudar vidas. “Acredito que a Igreja brasileira continua
sendo um lugar terapêutico, mas é preciso voltar a tocar a trombeta do
despertamento.”
Johnnatan, o
futuro pastor que abre a reportagem, tem feito isso. Exceção à regra, ele
superou o vício sem precisar ser internado em uma casa de recuperação. Mas sabe
que precisa vigiar. As recaídas são das maiores ameaças a ex-viciados, e ele já
passou pela experiência. “E não quero repetir nunca mais”, afirma. Consciente
da situação, hoje Johnnatan ajuda a tirar outros jovens do submundo das drogas.
Quase toda semana, visita instituições de atendimento, onde testemunha e
encoraja os internos a continuarem o tratamento. “Se eu consegui, você também
consegue”, costuma repetir para rapazes e moças – muitos dos quais, como ele,
deixaram para trás os tempos de comunhão com o Senhor e os irmãos para entrar
num caminho nem sempre com retorno.

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